sábado, 1 de junho de 2024

 

Nasci muitas vezes e já morri também muitas vezes.


Nasci uma vez de nascimento natural e, outras vezes, depois de ter morrido, naturalmente.

Consta do meu BI uma data: o Dia dos Reis. 

Foi com certeza um dia escolhido por mim, pois não era essa a data prevista.

(Havia previsões na altura???)

 Se na realidade me fosse dado escolher, teria mesmo escolhido nascer num dia tão mágico, ou melhor ainda, numa noite tão mágica, já que, de acordo com o registo e a palavra da minha mãe, nasci mesmo à noite.

Há um ano: 1952  e um lugar: Mocuba, no meio da Zambézia, de acordo com os relatos da minha mãe, que participou no acontecimento, para além de uma parteira negra chamada Adelaide. Premonição: a minha mãe por afinidade, vulgo sogra, tem o mesmo nome.

Não sei se me hei-de queixar das condições em que nasci: não havia sequer lâmpadas eléctricas e como nasci à noite, em vez de ver a luz do dia, vi a luz do Petromax.

Mas, enfim, nasci, com pouco peso e muito feia. 

E lá fiquei a viver em Mocuba, durante quinze dias.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

A   Minha Rua 

Não sei se a minha rua tem histórias. Tem-nas, certamente. Escondidas, guardadas no segredo dos corações. De vez em quando transborda uma lágrima, um pequeno escândalo de rua eu logo se esquece.

Mas, não tendo histórias, tem a sua própria história e, sobretudo, tem vida!

Quando a conheci, não se chamava Rua. Chamava-se Praceta à Rua …. Praceta à Rua José Malhoa. Como se a Praceta e a Rua fossem, ao mesmo tempo, duas identidades muito juntas e muito separadas.

A Rua corria lá para baixo, misturando-se com outras ruas: Alves Cardoso, Egas Moniz, que a levavam à espinha dorsal de Odivelas: Abreu Lopes, Guilherme Gomes Fernandes e, às vezes, até Lisboa, até à Calçada de Carriche. A Praceta nunca saiu do seu lugar. A Rua era a irmã descarada. Metia-se com todos e todos se metiam com ela. A Praceta só respondia a quem a procurava.

Ainda hoje assim é: quem lá vive ou quem lá mora.

E vive lá muita gente. Gente miúda eu, quando se torna crescida, não esquece a Praceta… à Rua José Malhoa.

É no meio da Praceta, encostados aos automóveis, sentados nas caixas da EDP, entre outros, que eles, os classificados de gente crescida, vivem os intervalos, os “furos”, esperam pelos setores, para o melhor e para o pior, começam e acabam namoros. Riem-se provocadores e irreverentes de quem os olha com ar sisudo e incomodado. Incólumes às críticas e ameaças da vizinhança, eles crescem. Eles crescem sempre. De um ano para o outro largam os calções e a bola, vestem calças de ganga e escolhem namoradas e namorados. Elas trocam discretamente o “elástico” pelo olhar lânguido.

As aulas funcionam no prédio mais alto da Praceta, no primeiro andar e segundo andar.  Quem mora perto, mais perto não precisa de relógio. O toque de saída às horas certas. Aos dez minutos é para entrar. Aos quinze está tudo na aula. Ou…. doce liberdade!

Só depois da meia-noite é que o silêncio sobe à Praceta, depois dos últimos alunos regressarem às suas casas. À noite passam por cá aqueles que vêm buscar um degrau, ou dois ou três, da escada da vida.

Então a Praceta dorme. Tranquila. É um sono reparador.

Às sete começam a chegar os que cá vivem e a partir os que cá moram.

Se me perguntarem se a Praceta é bonita, eu talvez diga que não. Prédios. Alcatrão. Calçada. Contentores. Nem uma árvore. Nem um canteiro. Nem uma flor.

Mas quem quiser tirar-lhe a fotografia do outro lado, talvez lhe ache o encanto que não se traça a lápis, régua, esquadro.

Odivelas, 1988 (talvez).


quinta-feira, 16 de maio de 2024

 Boas notícias!

As boas notícias chegam até nós como as outras notícias; umas inesperadamente, outras acompanhado o devir do tempo todo poderoso. 

Umas bastam-se a si próprias e voam por quantos céus encontrarem no caminho; outras, pairam num azul mais ou menos volúvel, que chora aqui e ali, como fazem as pessoas em vésperaas de tempestade maior. 

Mas daqui a algnns anos, o rio cumprirá o seu dever, deixando-se levar pela visão do rio, ao longe....

Desta  janela janela virada para o rio, não verei máquinas escavadoras ou outras, não verei blocos gigantescos de cimento, nem flamingos assustados.

Posso continuar a namorar o rio que guarda o meu deslumbramento. Desta minha janela virada para o rio, posso assistir ao espectáculo de luz, cores, tons, ondas trazidas pelo vento ou qualquer outra brisa.

Desta minha janela virada para o rio, ao cair do dia, protegida pela miopia dos curiosos, poderei tocar a linha do horizonte.

Chegarei assim ao Mar, Pai Grande do rio....

Boas notícias: "...a crise, causada pela pandemia, veio dar ao Governo tempo para ponderar na possibilidade de uma avaliação ambiental estratégica sobre o novo aeroporto ...." 




sábado, 9 de março de 2024

Hoje e agora, serás.

      Querida Lourenço Marques, não sei onde fui buscar esta ideia de seres mulher com nome de homem…Hoje e agora, serás.

A ideia nasceu após uma pergunta formulada à Música Amélia Muge, sobre a mudança do teu nome, se essa mudança traz alguma alteração aos laços estabelecidos contigo anteriormente. Nem ouvi mais nada. A pergunta entrou pelo meu ouvido directamente à minha memória e daí a ideia de te chamar senhora, de te considerar mulher.
És a minha mãe nova e bonita! És uma qualquer das minhas tias, todas elas mulheres com um capital de amor e de afecto sem limites nem plafonds. Crédito total. És qualquer das minhas amigas que cresceram comigo e continuam a acompanhar-me nas caminhadas ou mesmo nas corridas da vida. És a minha raiz, o meu ventre materno, a minha sensação de paraíso perdido, minha primeira infância intocável de memórias que não guardo senão em fotos e que me devolvem uma inconsciência do mal, do perigo. Espaço e tempo plenos de natureza luxuriante e sugestão de aventuras mil.
A minha memória primeira, catalogo-a num tamanho muito xxs, entre os dois e os três anos: uma mudança de colo, da minha mãe para a minha tia, que iria ser minha madrinha. Um carro parado, junto à Catedral.
És a minha avó Madalena, imensa como os seus olhos verdes, estes sim verdes de esperança. Também mulher de amores incondicionais e com uma dedicação à família que a transformava na verdadeira matriarca, com poder conquistado e aumentado ao longo dos anos.
As minhas priminhas, meninas felizes que corriam pelo nosso jardim do Éden privativo, o quintal da Avó, onde os canteiros das alfaces e dos melões, melancias, couves, batatas, árvores de todos os frutos, uns tanques imensos onde todos os dias as roupas brancas eram lavadas e estendidas em bases de ferro e arame a que chamávamos “coradoros” pelas duas mulheres da casa. Junto ao tanque… a romãzeira dava romãs, nem sei em que altura do ano, pois o conceito de “ fruta da época”, no meu passado remoto, não existe.
Hoje é e será sempre o teu dia, Minha Cidade, a tal que eu sei que traí….
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