sábado, 3 de julho de 2004

Sophia

“Dizemos «Sophia» como se esta palavra fosse sinónimo absoluto de poesia.” (Alice Vieira)
É certamente por causa dessa poesia, da palavra poética que Sophia de Mello Breyner foi candidata ao Nobel, a mais alta distinção no mundo das Letras atribuída a um autor vivo.
Quando a poesia toca um ser, todos os seus actos, escritos ou não, passam pela poesia. Todos os actos de Sophia parecem brotar da poesia.
Da poetisa conhece-se o apego ao mar, como ela, uma força da natureza, uma força que não cede, que não se verga, que não ilude nem desilude, que dá o prazer e o pão. O mar é tratado na “Saga” de maneira ímpar. O mar que mata, que colhe vidas e transforma vidas, como a do pequeno Hans, que aos catorze anos largou a terra, longe, e se fez ao mar. Havia uma proibição. Houve uma transgressão. O pai nunca lhe perdoaria a desobediência e Hans jamais poderia voltar à sua aldeia, a Vik, rever os seus, porque também ele, homem do mar, sabia que, na índole do marinheiro, o perdão é uma transigência menor.
As crianças são poesia. Por isso uma grande parte da vasta obra de Sophia tem como destinatário o público infantil. E lá está o mar! A gente do mar e a gente da terra. A Menina do Mar! Tão pequenina que cabe num baldinho da praia, daqueles que os meninos transportam do toldo para a beira-mar e da beira-mar para o toldo! Ela e um desses meninos travam conhecimento e querem trocar saberes. Ele quer levar-lhe o fogo e o perfume. Coisas de sensações! Ela quer levá-lo ao fundo do mar. Ele quer explicar-lhe o que é a saudade, que é da terra, mas que o mar ajuda a entender.
A filha, Maria de Sousa Tavares, diz que a mãe lhes transmitiu “desde a infância, o apego intransigente às coisas essenciais da alegria de viver: o bom pão, o bom vinho, o mar...”
A fé, a verdadeira fé, uma fé católica aparece na poetisa como o desenvolvimento natural de alguém tocado pela poesia. A fé também é um dom. E mesmo em tempos conturbados, lá está Sophia, com a sua fé e a sua verdade. No entanto, a sua sensibilidade sempre atenta está pronta a desmascarar a hipocrisia. O cristão tem de ser verdadeiro e todos os seus actos devem ser coerentes com os valores do evangelho. Para os mais pequeninos há o Natal, a grande e bonita festa cristã.
Elaborados estudos falam da poesia de Sophia, da essência do eu poético. Muitos entrelaçam a mulher e a sua obra. Mas foi precisamente num texto em prosa que encontrei a alma feminina, a sensibilidade da mulher, a consciência plena do seu papel no trajecto- vida. Foi num dos “Contos Exemplares”, A Viagem.
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, a 6 de Novembro de 1919. Aí passou a infância e foi aí que a poesia chegou até si, pela primeira vez. Aos três anos uma criada ensinou-lhe a Nau Catrineta, que Sophia aprendeu a dizer de cor. Antes de aprender a ler, o avô ensinou-a a recitar Camões e Antero.
Aos vinte anos casou com Francisco Sousa Tavares do qual teve cinco filhos. É ao marido que Sophia dedica os seus “Contos Exemplares”, com palavras que vale a pena citar. “Para o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual.”
Entre as várias honrosas distinções portuguesas e estrangeiras conta-se o Prémio Camões, atribuído à poetisa em 1999.
A 28 de Outubro de 2003, foi distinguida com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana. Por razões de saúde, foi o filho Miguel quem recebeu o prémio, em representação da mãe, com «orgulho, alegria e tristeza», disse.
Hoje a tristeza faz sentido, porque Sophia partiu, deixando para sempre enobrecidas a língua e a poesia.
Tinha oitenta e quatro anos.

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