terça-feira, 19 de outubro de 2004

Eu também acho!

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...


José Gomes Ferreira, padroeiro deste espaço

1 comentário:

eduardo disse...

Ainda bem que escreves sobre isso. Sempre achei curiosa e estranha a forma como gostava de me "despedir": anonimamente no leito e apenas na presença de quem me tem aturado estes anos todos. Dispensava a companhia dos filhos e dos netos.
Esquisito, não é?

Mas a malta está cá para durar, Madalena. Amanhã já é novamente outro dia e pensemos em coisas boas.