Belinha, esta manhã estavas zangada e agressiva.
O teu sorriso de dente único estava amarrado a uma expressão de raiva. Os teus gestos desarmonizavam-se na pressa de empacotar os sacos plásticos e fechar as duas malas de mão que trazias. O saco maior tinha a vaga forma de gente e tinha o tamanho da tua boneca, daquela que costumas embalar como se embala um filho.
Mas hoje os teus modos não eram os teus modos. Bateste na empregada que limpava o pó da televisão e não querias que ela acabasse a limpeza do chão.
Junto aos sacos de plástico e às malas, estavam duas bonecas. Não estavam vestidas nem penteadas. Não as trataste com os mil cuidados que costumas ter com a tua boneca grande, que até se parece contigo.
Que pecados expias tu, Belinha?
Não são os teus pecados certamente, pois não os tens, nem à luz da lei mais rígida dos homens, nem à luz das leis de Deus.
Que sentido faz o teu sofrimento sem conhecimento nem reconhecimento?
Contudo a relação com os outros existe para ti e manifesta-se sempre nos limites da ternura ou da raiva, como vi esta manhã?
Nós, os outros quase todos que não nos atrevemos a sentir até aos limites, a não ser que circunstâncias extraordinárias nos imponham a ousadia, quem, de nós, pode compreender-te, como dizemos vulgarmente, quase todos os dias, que nos compreendemos uns aos outros?
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