quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Alice

Alice!
Chamar-te-ei Alice, por analogia com a outra Alice que, tal como tu, ultrapasou as fronteiras de um mundo que não contribui para a felicidade dos homens. Nem tão pouco dos bichos, quanto mais dos homens ou da mulheres! Felizes os que sabem sonhar sonhos libertadores, sonhos verdadeiros, sem precisar de recorrer a qualquer artifício provocador de sensações.
Ali estás tu, Alice, em conversa serena e feliz com a mulher que te devolve o sorriso, que te acaricia o cabelo, passando-te os dedos, com vagar, sobre as madeixas brancas que te aconchegam as têmporas. Nada acorda sequer o teu tacto, também envolvido na ilusão.
Que segredos lhe contas, Alice, horas a fio, sem que as tuas pernas se cansem de ficar ali, em pé, no meio do imenso e nervoso corredor? Nem o ruidoso elevador para cima e para baixo, constantemente, estupidamente, com visitas, comidas, pessoal e acessórios de limpeza, te interrompe essas conversas longas.
O espelho e tu fazem-se companhia. Tenho a certeza que o espelho só reflecte mesmo a tua imagem. Nada mais! Serve apenas a tua fantasia e a tua vontade de ser feliz, passe por perto a adversidade que passar.
O teu cabelo brilha e compõe-se naturalmente, nunca se desgrelhando em poses inestéticas ou infelizes. Só os cabelos dos loucos se eriçam, lutando também eles contra a ameaça da normalidade. Os teus, não. Os teus convivem com a tua normalidade que é o que interessa! Cada um tem a sua normalidade, não é, Alice? E a tua é esta que vislumbras para lá do espelho e para a qual sorris o teu melhor sorriso, belo e verdadeiro. A tua pele também brilha, o que não acontece com a pele da maioria das mulheres da tua idade. E mesmo de outras, mais novas! Falta-lhes ilusão.
Estou certa que tu e ela falam de tempos distantes em que tu, Ou ela, quem sabe?, eras levada nos braços de príncipes, ao som de melodias inesquecíveis que ainda hoje podes ouvir naquela telefonia antiga que está do outro lado do corredor. Ou mesmo num posto de rádio nostálgico que passa essas cantigas, precisamente por serem inesquecíveis. E tu recordas o brilho desses salões e quase danças, quando percorres o imenso corredor e cumprimentas estes e aqueles, como se estivessem, como tu, numa grande festa da vida.
(Como tu estás enganada, Alice! Mas Deus te guarde e te conserve essa ilusão!)
Quando passo por ti e pelo teu espelho, não ouso olhar. Finjo-me distraída para não interromper o teu convívio com a outra Alice, do lado de lá do espelho.
Mas, um dia, havemos de falar e hás-de contar-me tudo sobre o teus sonhos. Quando os nosssos próprios sonhos nos não alimentam mais, há que recorrer aos dos outros.
De vez em quando, vejo-te lançar um sorriso para o lado de cá, para um dos jovens do teu tempo dos muitos que vagueiam e habitam o teu corredor. Eles não te retribuem a doçura do teu gesto, não entendem que és uma Rainha a dizer adeus aos Valetes de todos os naipes, porque a tua delicadeza está muito para além dos separatismos que a existência de vários naipes pressupõe.
O teu espelho é um trunfo que jogas para ganhar esta partida e talvez o jogo!

1 comentário:

Ana de Sousa disse...

"Espelho meu, espelho meu, existirá outra mais bela do que eu?" ou simplesmente me perdi de mim e já nem sei quem sou! o pior é que já não tenho os olhos de uma mãe que me façam renascer. poder ser eu sendo ela. por que razão não sei quem olha para onde olho? quem me fixa? ... do outro lado não há lado de cá, pois não? ... Hoje tivémos um belo convívio! i really like bloggers! many thanks! bloggers de todo o mundo uni-vos! Bjs para todos. ni