segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Saudade da Guidinha

Quem se lembra da Guidinha? Quem se lembra de Luís de Sttau Monteiro?
Em tempos que já lá vão (vão mesmo? ou é ilusão da nossa vontade?), não se podia escrever “à descarada”, a dizer mal do governo ou de outros senhores importantes, ou do estado das coisas. E qualquer pequeno atentado ao pudor hipócrita da moral pública podia valer um castigo pesado, não pecuniário, mas pago em liberdade, o que era bem pior. E, em termos de hipocrisia e moral pública, hoje, infelizmente, continuamos a não estar muito bem, receio...
Assim, disfarçadamente, para fugir o mais possível ao lápis azul e respectivas consequências, publicavam-se textos, que iludiam os donos do lápis azul, pois tinham o aspecto inocente e infantil de redacção. Quando percebiam que as redacções de inocente não tinham nada, era tarde.
As redacções da Guidinha remetem-nos para as vivências reais, duma família média-baixa , económica, cultural e socialmente falando. A Guidinha é uma criança traquina e quando é apanhada a fazer qualquer maldade, não diz a verdade sobre a identidade dos seus pais. Depois, diverte-se imenso com a confusão que gera, já que os pais, arranjados à pressa, são dois homens...A Guidinha já previa que trinta anos mais tarde o problema descia (ou subia?) à Assembleia da Republica e que todos os intelectuais, e não só, iam gastar muita massa cinzenta a debater o problema das uniões de facto.
(Deixem-me abrir um parênteses: Sttau Monteiro daria hoje um bom contributo para a discussão. Nunca foi um intelectual de moda. Foi sempre um homem que defendeu com coragem os seus pontos de vista, doesse a quem doesse. Não se veja nesta passagem qualquer preconceito. Ele viveu acima dos preconceitos e isso nem sempre lhe valeu a simpatia dos outros .)
Mas esta não é a única realidade que sai das redacções da Guidinha para os nossos dias, assim, quase sem tirar nem pôr...São os créditos, ainda sem cartão, mas já a malvada mania de se ter, ter, ter, sem pensar no ser. São as famílias quase pobres que não assumem as dificuldades do dia a dia.
São hilariantes as redacções da Guidinha! Por exemplo, quando a Guidinha se refere aos inconvenientes das modernas fechaduras, minúsculas, com buracos muito mais difíceis de espreitar. Impossíveis mesmo! É que a Guidinha representa muito bem um tipo de gente, que havia e não deixou de haver: os que gostam muito de saber da vida alheia. E defende a curiosidade, como atitude científica, com todas as forças. Cita a professora, que “diz que a ciência é filha da curiosidade” e afirma, corajosa, que vai continuar a espreitar pelos buracos das fechaduras.
A Guidinha é uma menina esperta, com o sentido de justiça que as crianças têm, mas espartilhada pelas insuficiências todas da sua classe. A Guidinha leva “bumba no toutiço” por dá cá aquela palha, à conta da frustração do pai, que se chama José e é escravo, de trabalho (subentenda- se), empregado de escritório, que receia não receber a gratificação no Natal, para comprar o peru.
Uma das coisas que a Guidinha não suportava era a eterna mentira em que a obrigavam a viver. Tretas, chamava-lhe. Uma delas era o Pai Natal. Um Pai Natal não oferece compêndios (era este o nome dos actuais manuais escolares) de Ciências Naturais! Um Pai Natal não traz do Céu uma camisola dos saldos da Rua dos Fanqueiros. Aí põe-se o problema do Céu ser a Rua dos Fanqueiros!
Hoje o Céu mudou de sítio, mudou-se para um dos modernos Centros Comerciais, mas a mentira é igual. Consome-se o Céu, em meia dúzia de compras.
A Guidinha esteve sempre lá, no suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa, para denunciar tudo, como quem não entende nada de coisa nenhuma.
E que falta faz a Guidinha hoje, aqui!
Hoje, alguém o recorda na Capital

1 comentário:

molin disse...

Foi assim que se conheceram os verdeiros artistas da escrita. Escrever o que não se podia e ainda por cima com o sentido de humor acima do grau máximo do refinamento não estava ao alcance de todos. Como ainda nhoje não está. Por isso que quando me vêm falar de objectividade jornalística, eu, dos meus 31 anos, rio-me e penso: como tudo mudou. E tão depressa. Para o melhor e para o pior. Sem qualquer tipo de resignação da minha parte, exclamo, em forma de suspiro acomodado: enfim, é a outra face do preço da Liberdade!

Adoro-te Madalena