quarta-feira, 19 de outubro de 2005

Receita de poeta

Será preciso nascer no meio do vendaval?
Será preciso trazer, nos genes, a poesia?
Será que é de tanto interrogar a vida que o poema aparece trazendo respostas que serão de novo perguntas, como acontece com os ciclos da água?
Será que basta olhar uma garota em Ipanema e dizer assim: "Olha que coisa mais linda..." para fazer cantigas eternas?
Vinicius de Moraes, poeta da língua portuguesa no seu jeito mais balançado e feliz, nasceu a 19 de Outubro de 1913.
Casou muito. Aliás, Vinicius foi muito em tudo. Quem sabe se esse "muito" não foi o motor da poesia?
Outro poeta, Carlos Drummond de Andrade disse que Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão.
"Quer dizer, da poesia em estado natural", acrescentou.
Quando Vinicius nasceu, desafiou o vendaval da madrugada no Rio!
E porque este espaço também carece de coisas simples que alguns apreciam, tais como a , aí vai uma receita culinária...
Feijoada à Minha Moda

Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora — perdoe — tão tarde


(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.


Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho


E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte


Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho — e o que mais for azado


Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo.


Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks


Uma vez cozido o feijão
(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão


E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas


De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho
(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)


E — atenção! — segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:
Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.


Feito o quê, retire-se o caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso


Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.

Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de lingüiça


Enquanto ao lado, em fogo brando
Dismilingüindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso

Em cuja gordura, de resto
(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.


Uma farofa? — tem seus dias...
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias
(Seleta ou da Bahia) — e chega


Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria — e mexa-se.


Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
— Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão...


Dever cumprido. Nunca é vã
A palavra de um poeta...— jamais!
Abraça-a, em Brillat-Savarin
O seu Vinicius de Moraes

2 comentários:

Dinamene disse...

Saravá, Madalena!
Vou parar por algum tempo.
Até breve e um beijinho.

Anónimo disse...

Eu adoro Vinicius. Vou já mandar-te uma coisa lindaaaaaaaaaaaaaaaaa.
É pr'a já.