domingo, 19 de fevereiro de 2006

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Este modelo de divulgação da escrita tem as suas vantagens: o imediatismo da divulgação é, sem dúvida, a maior dessas vantagens.
Mas, quem está a escrever do lado de cá tem isso em mente e, ao contrário de favorecer a espontaneidade da expressão, às vezes, refreia-a, sobretudo quando o assunto é de foro mais privado, quando é daquelas coisas que têm um lugar muito especial dentro de nós, com embalagens anti - corrosão, tão bem embrulhadas em afectos e emoções, que dá um imenso trabalho desatar os laços e pôr cá fora o que está lá para ser contado.
Apetece contar, dizer, escrever, mas parece que lhe fica a faltar o tempero do tempo que medeia o momento em que as palavras se inscrevem no texto e o momento em que alguém lhes pega e as leva.
Adia-se, à espera de melhores dias, em termos de inspiração e disposição.
Um dia há-de ser e antes que a fragilidade destes meios se faça sentir de modo irremediável, aí vai uma das histórias que guardo comigo, com especial cuidado.
O especial cuidado advém dos protagonistas.
Um deles é uma das pessoas mais importantes no mundo, para mim: o meu pai.
O outro é uma das pessoas mais importantes no mundo, para a História de Portugal e de Moçambique: Samora Machel.
Modernamente, diz-se: Então, é assim!
(Deixem-me ser moderna, que me dá jeito o bordão!)
Em Lourenço Marques, hoje Maputo, o meu pai exerceu com brio e dignidade as suas funções de enfermeiro, tendo percorrido com brilhantismo a carreira, chegando ao topo com uma idade muito jovem ainda. Hoje, a carreira e a vida do meu pai teriam sido completamente diferentes. Isso conforta-me, pois penso que a vida que ele viveu e como ele a viveu, valeu-“lhe” a pena!
Houve, então, um tempo em que o jovem Samora Machel e o meu pai se cruzaram na vida, nos mundos da enfermagem. Um era professor, o meu pai, e o outro era aluno, o Samora Machel. Desse tempo e desta relação não sei histórias.
Mais tarde, já com Samora a trabalhar como enfermeiro, no Hospital Miguel Bombarda, cruzaram-se outra vez. Nesse tempo, tanto um como o outro deviam estar no auge das suas outras carreiras de homens jovens e sedutores. Claro que os cuidados para não serem apanhados em flagrante delito amoroso não eram sempre devidamente acautelados e lá veio o dia em que isso aconteceu com o Samora. Na sua condição de enfermeiro-chefe, o meu pai fez o seu papel e repreendeu o “futuro Presidente da República Popular de Moçambique” por práticas de sedução, em local e hora de trabalho, alegadamente, claro. Como o meu pai, contava, com a graça de quem viveu o acontecimento, as ameaças de comunicação aos órgãos superiores caíram em saco roto, já que esbarraram na própria consciência, em matéria de sedução a toda a hora...
Anos mais tarde, o destino volta a pô-los na mesma cena, com papéis muito alterados, em termos hierárquicos e em termos de poder. Samora era então Presidente da República Popular de Moçambique e o meu pai superintendente do Hospital da Beira. Uma visita oficial do Chefe de Estado iria reuni-los e nas vésperas a memória deste episódio provocava-lhe muito medo.
Lembrar-se-ia bem o Presidente de como as coisas tinham acontecido? Que, ao fim e ao cabo, não lhe tinha feito mal nenhum? Lembrar-se-ia dele?
Quando se encontraram, Samora, no seu jeito especial, saudou-o como um velho conhecido e referiu-se à gordura que “a idade” -como o meu pai lhe explicou – tinha acumulado na magreza que já não era.
Tratou-o por “Rapaz!”
-Estás gordo, Rapaz!
A certa altura, o Director do Hospital, Doutor Pascoal Mocumbi, aludiu a uma partida próxima para Lisboa.
O Presidente quis saber porquê, também com o mesmo jeito.
-Lisboa? O que é isso Lisboa?
O meu pai tentava disfarçar o medo e explicava que o contrato tinha chegado ao fim, que tinha, em Lisboa, a filha e um neto.
O Presidente insistiu na estranheza, mas acabou por perguntar o que é que a filha e o genro faziam. O meu pai respondeu, mas não calou o Presidente:
- Vais escrever à tua filha e ao teu genro e vais dizer-lhes que o Presidente da República Popular de Moçambique ordena que venham trabalhar para cá!!!
A memória fica mais ou menos por aqui. Há um ano, precisamente, o meu pai recordou este episódio e contou-o, com a teatralidade que lhe era costumeira, acrescentando certamente mais um “Rapaz”, aqui e ali.
Esta história ficou mais valiosa ainda por ter sido a última que o meu pai contou, com o talento muito dele.
Foi exactamente há um ano!

13 comentários:

Pitucha disse...

Um grande beijo para ti, Madalena

IC disse...

Li... há escritos que não se comentam, deixa-se só um abraço. É o que te deixo, Madalena.

Passada disse...

Querida Mada
Questionava o JPT do Maschamba para que servia o bloguismo e claramente aqui está uma das suas funções.Já faz um ano em que trocámos palavras, vazios e dor. Hoje partilha-se a saudade. Moçambique espera-te para uma volta saudosa.
Beijinho grande

Nelson Reprezas disse...

Beijinho muito carinhoso para ti.

Anónimo disse...

Madalena
Que linda história! Que lindo momento!
Muitos beijinhos

Anónimo disse...

Parabéns Mada. Finalmente! E que história tão bonita, que tão boas recordações te deve trazer. Espero que tenha sido o primeiro de muitos textos que certamente vais escrever. Força Madalena. Só te posso apaludir, apoiar, incentivar...no resto, sabes as minhas "limitações"!

Anónimo disse...

Bem, amiga mais do que irmâ, fizeste-me chorar logo pela manhã! Abençoados pais que às filhas deram histórias para lavar os olhos e a alma! Muito se hão-de rir eles das nossas terrenas aflições! Também lhes há-de ser grato, lá onde a energia deles se encontre, que na nossa memória e no nosso coração, a gente lhes atribua tanta simpatia, esquecendo os raspanetes, o egoísmo and so one... Talvez a vida não seja mais do que histórias, pois que tudo passa, mas as histórias vão permanecendo... Manana

graziela disse...

Que história bonita. Imagino o seu Pai a contá-lá. São quase sempre bonitas as histórias de VIDA.
um abraço
graziela

Mitsou disse...

E está decerto orgulhoso da filha que quis partilhá-la connosco.

Um grande beijinho, amiga, e obrigada por este momento de ternura e saudável nostalgia.

Madalena disse...

Obrigada pelos comentários carinhosos que me fazem sentir bem. Esta foi de facto a última vez que o meu pai contou as suas histórias e esta foi a última, embora estivesse a repeti-la. Foi a meu pedido que ele repetiu. Não era dífícil convencê-lo. Dois dias depois o coração parou, com muita serenidade e com a dignidade que merecia. Também acho que é um mercimento justo lembrá-lo e fá-lo-ei sempre com a mesma gratidão por me ter ensinado algumas regras de vida. Este blog pertence-lhe, em parte. Foi este espaço que originou muitas conversas e as conversas eram muito necessárias para o distrair da doença. É muito bom ser filha deste pai, acreditem!
Obrigada a todos!

Emilia Miranda disse...

Um beijinho e um grande abraço.
É tão bom termos extraordinárias recordações dos nossos pais! Sei exactamente o que sentes.
Emília.

Anónimo disse...

OBRIGADA, MADALENA!! - beijo comovido, Isabella.

Anónimo disse...

Foi bom teres "desatado os laços" e deixado sair o tesouro desta embalagem para partilhares connosco.
Um grande beijinho
ana