terça-feira, 21 de março de 2006

Era uma vez...

A Tia Árvore estava muito contente, a receber os cumprimentos da criançada que por ali tinha passado, todos de boné amarelo, com ar solene.

Era um dia feliz para as árvores. Era o seu dia. Os Pais, as Mães, as Crianças, todos tinham o seu dia. Era bom terem escolhido um, para celebrar a Árvore e a família das árvores, a Floresta

De repente, reparou num versinho caído, a choramingar, quase juntinho ao tronco, molhado da chuva que também não quis faltar à festa.

- Que fazes aqui, versinho?

- Então tu não vês que eu tenho o pé quebrado?- respondeu, a soluçar.

A árvore, recorrendo naturalmente ao seu instinto maternal, olhou, investiu toda a sua atenção e paciência e olhou, com muito cuidado. Tornou a olhar e não viu nada.

-Ó versinho. Está tudo bem. Olha lá: as palavrinhas estão todas no seu lugar. As sílabas métricas estão todas certinhas. Tu és um decassílabo. Não és um versinho qualquer.

Mas o versinho cada vez gemia mais. A Tia Árvore pensou e bem. "Isto foi coisa de alguma linha transviada... Cheira-me a Decreto- Lei."

A Tia Árvore não encontrava razão para aquela lamúria, para aquela tristeza. Só podia ser sensibilidade do versinho.

- Foi uma folha que passou por aqui e disse que eu tinha isto...

- Isto? O quê, versinho?

- Chamou-me verso de pé quebrado...

A Tia Árvore sentiu a seiva a correr-lhe mais forte nos ramos e agitou-se, como se uma ventania ali estivesse a soprar. Percebeu tudo e perguntou ao versinho.

- Diz-me já que folha foi, versinho, que isso foi uma maldade muito grande.

O versinho parara de chorar e com muita admiração reparou que já não lhe doía nada.

-Sofreste uma humilhação e eu não permito que nenhuma das minhas folhas te trate assim.

-Não foi uma folha tua, tia Árvore. Foi uma folha de papel que passou por aqui, cheia de palavras e números e datas.

A Tia Árvore agitou os ramos novamente, mas desta vez com mais suavidade, porque se sentiu aliviada. Não tinha sido nenhuma das suas folhas.

Tão novinhas ainda, a nascer e a ganhar cor e forma, com o primeiro calor primaveril... Como é que podia ter pensado nas suas folhas? Como é que não pensou imediatamente nas folhas escritas sem amor, sem imaginação, sem talento, sem nada.... Essas sim, seriam capazes de pôr um versinho a chorar.

E logo um decassílabo, com uma ascendência tão nobre!

Dizem que foi um poeta muito famoso que o trouxe pela primeira vez de Itália para Portugal. Um tal Sá de Miranda. E não é essa a única glória no passado do versinho triste. Então e os Lusíadas?

Isto já era conversa da Tia Árvore, para convencer o versinho que não era nada um verso de pé quebrado.

-Pois é, Tia Árvore, ainda bem que me falas nos Lusíadas. Saí de lá de manhãzinha e os outros versos devem estar preocupados.

O versinho enxugou as lágrimas, arrumou as letras que entretanto se tinham desalinhado com a tristeza...

-Ai, Tia Árvore, que aflição!

-Que foi agora, versinho?

- Tenho aqui duas vírgulas e não sei onde é que estavam, quando me vim embora... Estive quase quinhentos anos quietinho e agora, logo hoje, que eu resolvi sair para celebrar o teu dia, acontece-me isto.

Já estava outra vez a chorar.

A Tia Árvore, cheia de paciência, pegou nas vírgulas e pousou-as no lugar que o poeta lhes tinha destinado, à direita e à esquerda da linda Inês.

- É assim, não é versinho?

"Estavas, linda Inês, posta em sossego"

-És o verso mais bonito de Camões, confidenciou, emocionada, a Tia Árvore.

-Achas mesmo?

- Claro. Eu nunca minto. Vai, não te atrases, para a mãe Poesia não ficar preocupada. Deve estar a voltar das celebrações que há por aí.

- Gostei muito de falar contigo, Tia Árvore.

- Eu também gostei muito de falar contigo, versinho. E já sabes: não deixes que nada nem ninguém duvide do teu valor.

A Árvore agitou-se com a suavidade de uma brisa, para dizer adeus ao versinho que correu para a sua estrofe, que não estava longe....
Pelo caminho do rio, era um instante, embalado por uma Tágide sonhadora e feliz!
a minha árvore
Esta historiazinha tem uma dedicatória.
Para a Stela!

8 comentários:

Pitucha disse...

Que hsitória liiinda Madalena.
Beijos grandes

Emilia Miranda disse...

Madalena!!!!!
Que história mais bonita!!!!!!!!
Não digo mais nada. Não sei, não posso, não me atrevo.
Tenho de a ler aos pequenotes netescritores.
Um abraço com todos os braços de todas as árvores.
Emília.

Madalena disse...

Obrigada, Pitucha e Emília. De vez em quando sai uma historinha. Fico muito feliz por gostarem e por saber que vais lê-la aos pequenotes. Beijinhos às duas!

Nelson Reprezas disse...

Madalena
Desta vez não brinco. Porque conseguiste fazer passar por mim uma onda de ternura que volta não volta anda por aí perdida como as vírgulas da Inês. Só por isso te deixaria aqui um beijo muito meigo de amizade. Mas a história não é para mim, é para a Stela. E tenho a certeza que este post vai ser impresso e guardado, muito bem guardado, no coraçao da mãe da Stela. Para que daqui a uns anitos, poucos, ela possa recontar a história à Stela e dizer-lhe que a recebeu duma amiga ternurenta e com uma sensibilidade do tamanho da mundo e que se chamava Madalena
Um grande beijo para ti e obrigado.
P.S. E amanHã já telefono à Passada a contar, que ela tem andado arredada dos blogues.
beijos!

Anónimo disse...

Madalena
Que história tão cheia de ternura.
Que história tão encantadora.
Por aqui a Stela vai saber que a vida tem coisas lindas.
Beijinhos agradecidos

Passada disse...

Mada querida
Tenho andado pelo blog entre mamadas e fraldas, a pujança da exigência, mas vai dando. Espumante tem razão sim, vou guardar para ler mesmo antes de ela saber ler, à noite depois dum banho aconchegado. Não quero mais filhos, esta está a ter aquele tratamento de "guardar tudo para ela ver um dia" porque tem tido muito carinho de muitas pessoas. Tu sem dúvida a mais ternurenta. Beijos grandes da Stella Michéle e meus

Anónimo disse...

Lindo!Lindo!Lindo!Madalena!!!
Vou-te contar um segredo...à medida que ia lendo,lendo e adorando ia tentando adivinhar quem seria o/a autor/a...
José Jorge Letria,Sérgio Godinho...
e afinal...Parabéns,não páras de me surpreender!!!
E que tal um livrinho de historiazinhas,minha linda,vai pensando nisso.
Um beijo grande com muita pena que desta vez não possas estar connosco.

Luisa Hingá disse...

E eu também vou imprimi-la para que a minha Mafa, que anda numa de leituras na escola a leia!!!
Beijinhos
Luísa