sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Ontem não te vi...

Cada um tem a idade com que nasce!, disse Lobo Antunes, o António, e eu acreditei.
Lembrei-me então de ti, Belinha, como se de repente percebesse o enlevo com que embalas a tua boneca, apesar dos branco que polvilha os teus cabelos.
Um dos teus olhos não se afasta da boneca de trapos. O outro percorre as ausências de ti, os espaços em que deambulas, às vezes, ou em que te deténs, outras vezes.
Quando te sentas no sofá da entrada e te balanças no sonho de embalar alguém, ninguém te vê e tu não vês ninguém. Os teus olhos abertos e fixos em diferentes direcções não perscrutam os corpos dos vivos, muito menos as pessoas reais.
Outras vezes, aconchegas a marafona ao teu seio abundante, a rebentar de amor encaroçado, enquistado e acenas aos teus conhecidos que te desconhecem porque tu és a personificação de todos os receios da humanidade.
Eles querem saber quem são, vê tu! Grande presunção! Querem ter certezas da sua normalidade. Como se a normalidade fosse um condomínio fechado, trancado a setenta chaves, onde podem permanecer imunes aos males que os afligem, enquanto humanidade.
A verdadeira identidade da humanidade resume-se à posse de um corpo que cumpre as suas funções, de acordo com a sua condição (ou será catalogação?) de ser vivo. Como um peixe. Como um macaco. Como as ervas. E uma cabeça que se evade para longínquos paraísos desconhecidos. Aí a vida dança e percorre o tempo com o ritmo com que tu embalas a marafona.
E toda a bagagem que é precisa é um saquinho, o tal saquinho que tu pedes insistentemente.
E quando é dia de tu veres gente real, acenas e chamas e dizes: Estou aqui!
Belinha, tu nasceste e vais morrer com a sabedoria da infância. Nasceste menina e vais morrer menina, apesar dos cabelos brancos e de algumas rugas que riscam a tua pele gorda e rosada.
Ninguém te pode dar mais de três anos. Quatro, no máximo!
Aposto que a tua marafona nasceu mais envelhecida!
Aposto também que o teu príncipe encantado é o Pai Natal, ele próprio sobrevivente da infância!

(Obrigada, escritor, por me ter feito perceber o que se passa com a Belinha!!!)
Imagem daqui Ewan McClure

2 comentários:

Pitucha disse...

Os escritores são gente especial!
Beijos e bom fim-de-semana

Ana de Sousa disse...

este texto está um ESPANTO!!!! excedeste-te. Bravo! Ainda bem que o li! PARABÉNS!!!