É que se algum dia eu vier a morrer, que seja assim, sem sofrimento e num dia cheio de sol!
Aparecia normalmente ao fim do dia, quando os miúdos estavam mais irrequietos. Irrequietos é um eufemismo! Impossíveis de aturar, como são os miúdos quando se contam agradavelmente à meia dúzia e têm já, em cima das moleirinhas, o sol de um dia inteirinho de praia, brincadeiras e mimo dos avós.
Eram eles que corriam ainda mais do que o costume, pela porta da cozinha, para avisar a visita. Logo atrás dos miúdos, chegava então o ilustre representante da geração dos bisavôs, carregando, mais ou menos discretamente, uns quantos álbuns de fotografias e uma vontade infinita de contar as viagens que as fotografias documentavam.
Os olhos azuis brilhavam tanto quanto brilhava o céu de Agosto na Costa da Caparica! Um ar de criança brilhava-lhe também nas narrativas monologadas e exaustivas, na voz algo insegura de se fazer ouvir.
A rotina do fim do dia e os preparativos do dia seguinte roubavam aos adultos a atenção que a boa educação exige que seja dada às visitas. Mas isso não retirava nem uma vírgula ao entusiasmo que trazia. E levava, “na volta”, porque lhe estava na pele. À hora da despedida, os adultos exibiam um sorriso franco e sincero, por terem, verdade, verdadinha!, gostado da visita. E por ter chegado ao fim aquela missão específica de ouvir, ouvir, ouvir. Havia afectos e passados em comum o que tornava a paciência mais verdadeira.
Às vezes, a mulher vinha com ele e trazia o crochet para compor a audiência e gozar, por ela também, o gosto da visita e do convívio. Havia uma cumplicidade com aquele entusiasmo quase louco, contudo era uma cumplicidade entremeada de lucidez serena. O crochet ajudava a entreter as horas em que ia ouvir uma vez mais as aventuras da viagem. Ela o que queria era falar da vida, das filhas, da esperança que todas as mães têm de ver os filhos felizes, com uma vida muito organizada, que possa confirmar e atestar a boa educação dada pelos pais... Nem sempre isso é assim. Quase nunca isso é assim. Pelo menos de modo tão linear, tão simples. Mas as mães agarram a esperança e transportam-na com os cuidados todos, para que não se quebre. Não transferem nunca esse capital de esperança para outras contas e nem saldam as dívidas! Eles, os pais homens, por vezes, conseguem e selam as dúvidas. É mais lógico e mais normal, em termos de sobrevivência mental.
Quanto a sonhos, ele era o rei dos sonhos, mas o sonho rei, depois de ter sabido que as suas ascendências ilustres davam direito ao uso de um brasão, foi ter um filho varão que lhe perpetuasse aquela honra. Não era honra que se desperdiçasse! E, embora a idade fosse já avançada nos relógios biológicos dele próprio e da mulher, lá tentaram a sorte e engravidaram. Viveram nove meses de expectativa e de ilusão. Afinal, era outra menina. Mas nestas coisas, felizmente o instinto é mais forte do que as ilusões. E pai é pai. E mãe é mãe. A menina que era para ser rapaz nasceu e cresceu saudável. Trouxe os brasões nos genes: os olhos tremendamente azuis.
No que toca a sonhos e entusiasmos, a vida foi de facto generosa, até ao último dia.
Isto é, quando chegou a hora marcada, foram encontrá-lo entretido com os comboios eléctricos. Tinha mesmo contratado, à socapa, um electricista para consertar uma das locomotivas!
Ia bonita a vida, lá isso ia, mas já era tarde e tinha de ser. Tinha de ir!
Era domingo e o sol, em jeito de tréguas, brilhou para o acompanhar.
Foi assim, num domingo cheio de sol, que se despediu do mundo o último representante daquela geração. Todos terão pensado o mesmo que eu? É que se algum dia eu vier a morrer, que seja assim, sem sofrimento e num dia cheio de sol!
6 comentários:
Uma das recordações que tenho quando ia com a minha mãe ao Luso encher uns garrafões de água é das voltinhas dos tristes: casais nos carros em que eles, ao volante, tapavam os olhos com o boné, inclinavam o banco e adormeciam a ouvir o relato do futebol enquanto as mulheres ficavam a fazer malha ou crochet.
Os putos andavam a brincar nos jardins da avenida das Termas, a sujarem a roupa de domingo...
Tardes soalheiras, embora às cinco da tarde começasse a fazer frio porque o sol deita-se mais cedo na hora de Inverno. No Verão os mesmos protagonistas faziam mais uns quilómetros e desciam até Aveiro para ir até à praia, com o farnel completo: pratos, copos, talheres, arroz de frango e uns croquetes acompanhados por umas fatias de presunto para enganar o estômago à hora do lanche até à hora do jantar.
Anos 70. Tempos dos Toyota Corolla da primeira geração, Peugeots 504, NSU's e Renaults 5, Marinas, Sunbeams, Talbots, Citroen GS Pallas... enfim...
Quem não queria uma morte assim, a sorrir!
Beijos
Pois eu não quero que tu morras, pronto!
Mais uma vez Parabéns pelo blog...e este texto está uma ternura. Realmente quem não gostaria de "acabar assim"!
Fiquei emocionada com o reecontro com a "Luisa"...também eu gostaria de poder encontrar alguns dos professores que me marcaram. Mais uma penalização, no "corte" com África. Também vivi em Moçambique (Lourenço Marques)andei na Escola Comercial e também e por coincidência tenho muito boas recordações da minha professora de Português-só me lembro que se chamava Maria de Jesus (tinha um Vauxall Viva Azul) e que me fêz gostar na época muito de Júlio Dinis (eu tinha nessa altura 15 anos)....
Madalena, parabéns pela nomeação no Chuinga para o melhor blog feminino...como não tenho blog não posso votar, mas é um dos meus favoritos também, embora uma pessoa acabe por se perder na escolha com, felizmente, tanta coisa boa que se vai lendo !...
Beijinho
M.Dores
Eh, pá, oh Maria das Dores, agora deixaste-me sem jeito & curiosa!... quem és tu?... - vou agradecer-te no 'chuinga', ok? Abração.
E a Madalena referiu-me?... onde?... lá vou ter que cuscar de novo o 'chora' de alto a baixo... mas até cá venho sempre e não vi... oh, Mad!...
Uff!, só agora ao reler é que percebi... claro que o 'chuinga tinha que nomear a companheirona da Madalena!! - uff!, oh Mad', estava a ver que me tinha saltado um post teu... esqueçam o comentário de cima, ok?
Um beijo para as duas, IO.
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