sábado, 1 de setembro de 2007

Parabéns, Escritor Lobo Antunes! *

Todos os dias, à mesma hora, chega o "presidente da república", como lhe chamam as companheiras de naufrágio. Senta-se na melhor cadeira da sala e espera impaciente, ante a reprovação das senhoras, que "aquilo" dê certo.
(Está-se nas tintas para a reprovação. Quem sabe se não se habitou, ao longo da vida, aos olhares de "tampa" que o vacinaram e o prepararam para esta indiferença, na última etapa, preenchida pelo mal do açúcar que não lhe dá descanso?)
Os olhos vão do relógio para a porta e da porta para o relógio. Um deles está mal. Se o relógio marca a hora certa, a porta está errada, porque está fechada. Se a porta está certa, então é o relógio, que não anda ao ritmo da sua vontade e dos seus açúcares.
As senhoras, sentadas em roda, emolduram todos os dias a mesma impaciência do senhor da diabetes. Todos os dias a mesma impaciência. Todos os dias a mesma hora. Todos os dias as mesmas senhoras e os mesmos olhares cúmplices de uma reprovação inocente e inconsequente. Aqueles passos curtos e rápidos também lhes marcam as horas delas e, mesmo se têm visitas, os ritos mantêm-se. Ele chega. Ele senta-se. Ele não espera. Ele desespera. Ele bate na porta com a ponta da canadiana. Ele olha para o relógio. Ele bate outra vez na porta.
A porta abre-se e uma voz meiga promete-lhe o socorro, o açúcar que lhe está faltar no sangue e na vida.
A glicémia não sobe, mas ele sobe a manga da camisa, preparando-se para a injecção que lhe trará o alívio.
A presença da enfermeira estabelece um ambiente aparentemente não-hostil. As senhoras disfarçam. Não querem ficar mal-vistas aos olhos de quem pode aliviá-las, nos seus achaques. Os olhares dirigem-se para o televisor com um interesse "faz-de-conta".
A enfermeira lê os valores e tranquiliza o senhor, enquanto lhe aplica a insulina.
Deseja-lhe as melhoras e dirige-se ao gabinete. Já não vale a pena fechar a porta. Está na hora de distribuir a medicação. A porta aberta desperta um interesse mais verdadeiro do que o televisor.
A porta marca sempre a fronteira entre a saúde e a doença, entre os mais velhos e os menos velhos, entre qualquer coisa de menos bom e qualquer coisa de talvez bom... Uma porta aberta induz o sonho!
O "presidente da república" já vai longe, ao fundo do corredor, como que a fugir daquela cena em que todos os dias tem de desempenhar o papel principal, o do náufrago affito que ordinariamente se salva, graças a uma simples agulha que não borda nem um sorriso no semblante zangado.
António Lobo Antunes nasceu a 1 de Setembro há sessenta e cinco anos. Há um ano ensaiei uma crónica no dia dos seus anos. Este ano atrevo-me a fazer o mesmo, pelo simples prazer que isso me dá. Quem me dera saber escrever à L.A.!
Parabéns, Escritor!
* Alteração introduzida por sugestão da IO, no comentário. Obrigada, IO.
(Ou estavam a pensar que eu tinha classificado o LA com uma estrela só? Isto é escritor de seis estrelas!)

2 comentários:

Pitucha disse...

Confesso que gosto mais de ti do que do LA.
Beijos

Anónimo disse...

Eu só li os 4 primeiros livros, mas gosto das crónicas da visão e acho que devias ter escrevido Escritor, que este não é de e pequeno.
Outro que também deve ser escrito com maiúscula é o Saramago, li três e abandonei dois.
Porque falo nos dois?, porque os nossos escritores não são diferentes das vizinhas e, uma vez, o ALA criticou o JS por ter continuado a escrever para lá dos 65. Vamos ver se a inveja está ultrapassada ou se o ALA já não acha agora 'gagá' fazê-lo...

Beijo para ti, oh leoa Mad' que foste à bola - eu tb fui ao da Machava.