quinta-feira, 30 de maio de 2024

A   Minha Rua 

Não sei se a minha rua tem histórias. Tem-nas, certamente. Escondidas, guardadas no segredo dos corações. De vez em quando transborda uma lágrima, um pequeno escândalo de rua eu logo se esquece.

Mas, não tendo histórias, tem a sua própria história e, sobretudo, tem vida!

Quando a conheci, não se chamava Rua. Chamava-se Praceta à Rua …. Praceta à Rua José Malhoa. Como se a Praceta e a Rua fossem, ao mesmo tempo, duas identidades muito juntas e muito separadas.

A Rua corria lá para baixo, misturando-se com outras ruas: Alves Cardoso, Egas Moniz, que a levavam à espinha dorsal de Odivelas: Abreu Lopes, Guilherme Gomes Fernandes e, às vezes, até Lisboa, até à Calçada de Carriche. A Praceta nunca saiu do seu lugar. A Rua era a irmã descarada. Metia-se com todos e todos se metiam com ela. A Praceta só respondia a quem a procurava.

Ainda hoje assim é: quem lá vive ou quem lá mora.

E vive lá muita gente. Gente miúda eu, quando se torna crescida, não esquece a Praceta… à Rua José Malhoa.

É no meio da Praceta, encostados aos automóveis, sentados nas caixas da EDP, entre outros, que eles, os classificados de gente crescida, vivem os intervalos, os “furos”, esperam pelos setores, para o melhor e para o pior, começam e acabam namoros. Riem-se provocadores e irreverentes de quem os olha com ar sisudo e incomodado. Incólumes às críticas e ameaças da vizinhança, eles crescem. Eles crescem sempre. De um ano para o outro largam os calções e a bola, vestem calças de ganga e escolhem namoradas e namorados. Elas trocam discretamente o “elástico” pelo olhar lânguido.

As aulas funcionam no prédio mais alto da Praceta, no primeiro andar e segundo andar.  Quem mora perto, mais perto não precisa de relógio. O toque de saída às horas certas. Aos dez minutos é para entrar. Aos quinze está tudo na aula. Ou…. doce liberdade!

Só depois da meia-noite é que o silêncio sobe à Praceta, depois dos últimos alunos regressarem às suas casas. À noite passam por cá aqueles que vêm buscar um degrau, ou dois ou três, da escada da vida.

Então a Praceta dorme. Tranquila. É um sono reparador.

Às sete começam a chegar os que cá vivem e a partir os que cá moram.

Se me perguntarem se a Praceta é bonita, eu talvez diga que não. Prédios. Alcatrão. Calçada. Contentores. Nem uma árvore. Nem um canteiro. Nem uma flor.

Mas quem quiser tirar-lhe a fotografia do outro lado, talvez lhe ache o encanto que não se traça a lápis, régua, esquadro.

Odivelas, 1988 (talvez).


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