Tenho um sonho recorrente: sonho com o Baptista Bastos, a repetir a pergunta que fazia a todos os entrevistados, num dos seus programas da Sic: “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”
Esta noite, sonhei que ele me dirigia a pergunta a mim: “Madalena, onde é que tu estavas no 25 de Abril?” Ainda tentei ignorá-lo, porque pensei tratar-se de um Herman Sic Especial. Mas ele insistiu, insistiu e eu acabei por lhe responder, por lhe contar.
BB, estava naquele estado intermédio, entre a esperança e o medo.
Estava na Faculdade de Letras de Lisboa, no quarto ano de Germânicas.
Tinha visto, pouco tempo antes, a polícia de choque entrar pelas janelas do bar da faculdade e desatar à bastonada...
Esse foi um dos dias do medo!
Vi, nesse mesmo dia, dois professores da Faculdade, ao lado dos estudantes. Um deles fora atingido pelos bastões e sangrava. Eram dois homens, cujo prestígio, o tempo mais e mais engrandecerá: David Mourão Ferreira, o professor, o poeta, o escritor; Lindley Cintra, Professor Doutor, eminente linguista.
Esse foi também um dos dias da esperança!
No dia vinte e cinco de Abril eu ia ter aulas com o Professor Doutor Fernando Moser. Recordo-o com muita saudade. Recordo a sua sabedoria imensa e a sua humanidade. Lembro-me dele a propósito de “linguagem caseira”. As coisas mais difíceis tornavam-se fáceis, porque ele traduzia tudo para “linguagem caseira”. Para ele, um aluno era o aluno.
Eu era estudante e casadinha de fresco. Dividia o meu tempo entre a faculdade e a aprendizagem da lida da casa (a lida da casa é que correu mal, ainda hoje corre! Nunca aprendi a ser uma dona-de-casa a sério!).
Aliás, os dois éramos estudantes. Morávamos num apartamento alugado, três assoalhadas, em Odivelas.
A diferença para as cinco assoalhadas sonhadas era duzentos escudos, o que era muito dinheiro. Dava para vinte e nove sessões clássicas no Monumental, segundo balcão ( oito escudos).
E era preciso fazer opções!!!!
Mobiliário e electrodomésticos: o indispensável!
Vivemos intensamente a tal esperança de um “país livre”, sem “mordaças” nem cães-polícia nas imediações das faculdades, sem “gorilas”, sem guerra colonial, para onde iriam os nossos namorados, os nossos maridos, os nossos irmãos...
A esperança traz sempre o medo a reboque.
Tivemos medo: que tudo voltasse atrás, que tudo desse para o torto. E do futuro, esse desconhecido!
Acordei com uma sensação estranha.
Esse futuro já cá está. É hoje!
São trinta e um anos a celebrar a generosidade, o despojamento de um homem como o Capitão Salgueiro Maia, o super-herói das nossas memórias de Abril!
18 comentários:
Sensata, já tinhas dito ser. Genuina... não é necessário que o faças. Mesmo que disfarces, não és capas de esconder a tua genuinidade :)
Eu já tinha acabado o curso, também sou mais velho. Mas, muito jovem ainda e também casado e pai (fui pai os 23 anos...), estava em Malange. Vivia em Luada mas estava integrado num programa de pulverização aérea de algodão na Baixa de Cassange. A notícia foi-me dada, à noite, num restaurante de Malange. No dia seguinte, muito cedo, regressei, na avionete em que me deslocava, a Luanda e "comuniquei" à família que a nossa vida iria sofrer, de certeza, uma grande alteração. E sofreu. Dava para um livro, se eu soubesse escrever...
beijinhos :)
Madalena:
Que bela homenagem a todos aqueles que tornaram possível escreveres isto.
Um grande, enorme, abraço,
Emília.
Bolas, deu gosto ler! Viva a liberdade!
Estava no 3º ano dum curso agora extinto - Finanças - Instituto Superior de Economia. Tinha há poucos dias corrido à frente dos Gorilas, aqueles que tinham morto o Ribeiro dos Santos e logo no meu espaço. Também estava entre a Esperança e o medo - mais esperança do que medo.
O que mais me dói é que hoje - no futuro de há 31 anos- ainda sinto a mesma esperança e o mesmo medo. Será normal?? Beijinhos. Viva Abril Sempre. Luísa
Obrigada pelos vossos comentários!
Espumante, já li o teu post sobre o país de Abril. (Quem é que não sabe escrever?!)
Emília, tu és o exemplo da esperança, com a tua dedicação aos pequenotes escritores.
Cê, viva mesmo a liberdade!
Luísa, é normal, claro! Em ti é normal porque os valores não mudaram nem para ti. Nem para mim, porque tenho o privilégio de ter amigas como tu que me ajudam a continuar a acarinhar esses valores!
Obrigada pela visita!
Estava a trabalhar com alguém que viria a ser um dos fundadores do PPD. Que tempo maravilhoso. Quanta esperança, quanta emoção. Como diz o Espumante, se soubesse escrever, poderia transmitir toda a hilariante experiência vivida naqueles únicos governos provisórios.
Madalena, para além dos Professores Lindley Cintra e Fernando Moser, recordo também, com muita saudade, a Maria de Lourdes Belchior, o David Mourão-Ferreira, o Vitorino Nemésio, o Padre Manuel Antunes e o Padre Honorato Rosa (que dava História do Cristianismo, como cadeira de opção).
JRD, temos todos vinte anos e alguns cravos!
Laura, rendamos pois homenagem a todos os que nos formaram o pensamento para a liberdade!
Obrigada por term cá vindo!
Adorei ler, Madalena!! _ beijo grande, IO. _ Ganhou a esperança!
Que bonito texto Madalena. Ainda para mais descobri que somos colegas de faculdade...Viva a FLUL Viva o 25 de abril! Beijinhos
Viva a Chuinga! Viva a T-Shelf! Viva a liberdade!
Beijinho às duas!
Que lindo texto, Madalena! Só mesmo tu, com esse talento enorme que tens. Beijo muito carinhoso e...Viva a Liberdade!
Que bom visitar a tua casa...como é bom estar entre os jovens de Abril!
Eu era uma apagada dona de casa, já com filhos grandes, e muito, muito apreensiva a respeito do futuro. Casada com um executivo de um banco, piores que militares, dizem...lol Só em Setembro saí para a rua para, trémula mas cheia de determinação, pegar na vida, como de um cravo se tratasse, e abrir os braços à vida...
Cinda, obrigada pelo teu carinha.
Ana, que bom ter-te outra vez por aqui. Já tinha saudades. Mulher de coragem!
Th para ti um beijo muito muito especial pelo que contas, pela coragem com que o fazes e pelo exemplo que transmites nas tuas palavras quando dizes que foste pegar na vida como se de um cravo se tratasse.
Aquele abraço a todos os que comentaram!
Já li tarde, mas fiquei impressionada! Eu que ainda era um piolho nessa altura, leio com espanto e admiração as tuas experiências! Obrigada pela partilha das mesmas! Um beijo!
Já uma pessoa não pode ir festejar o 25 de Abril,e perde logo um sonho tão belo!
Parabéns Madalena pela prosa e pela homenagem.
O meu 25 de Abril foi vivido e celebrado ainda em Lourenço Marques.Foram dias de euforia só ensombrados mais tarde pelo 7 de Setembro que também lá passei e nunca mais vou esquecer!
Beijinhos
ana
lilla e ana, beijinhos para as duas.
Os cravos ainda andam por aí!
Gostei deste testemunho pessoal acerca do 25 de Abril.
Beijinhos.
Onde é que estava? Recordo melhor como é que estava: em pulgas.
Para poder estudar na casa em frente onde te formaste, Madalena, a minha pobre Mãe levantava-se às cinco da manhã para fazer limpezas no Ministério das Finanças.
E foi nessa hora que acordei sobressaltado com o chamamento no meu quarto pela voz dela. Olhar assustado, o seu. Um nervoso miudinho no andar dela. Como quem quer defender as suas crias dum perigo que só as Mães sabem pressentir.
“- Filho, estão a dizer na rádio para não sairmos de casa! Há qualquer coisa na rua.”
Foi dum salto que desci as escadas do meu quarto, ainda a tempo de ouvir o terceiro ou quarto comunicado emitido por Joaquim Furtado no Rádio Clube Português. Deu-me um click. Não pensei duas vezes e vesti-me à pressa. Cabelo comprido desgarrado e com a barba por desfazer. Não interessava. Estava ali uma “oportunidade” de, como tu, viver a História com calças à boca-de-sino.
E lá estava eu na Rua da Trindade – onde tinha emprego – onde uma coluna da GNR preparava posições. Depois foi o envolvimento no Largo à chegada deles por volta das dez e meia se não me engano. O andar por aquelas ruas aos gritos com palavras de ordem inventadas. Com bandeiras que apareceram sei lá de onde. E muita, mas mesmo muita gente que viveu esse único momento.
Quando cheguei a casa, por volta das nove da noite, levei um raspanete. Achei-o justo, mas queria lá saber. O regime tinha caído. O Povo estava na rua com os cravos na lapela e Portugal tinha um futuro novo pela frente.
Mas foi à trinta e sete anos, minha querida amiga.
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