terça-feira, 22 de novembro de 2005

A carta

Esta carta vem hoje publicada no jornal O Público. Não tinha sequer tropeçado nela e se não fosse a minha amiga Ana não a teria lido. Ela recomendou-ma e disse-me: Lê e põe no blog. Como eu gostava de ter escrito esta carta!, acrescentou.
Aqui está!

Por que fiz greve

Sou professor do ensino secundário há 16 anos e aderi à greve de dia 18. Já não me lembro quando foi a última vez, antes desta, em que o fiz. Não tendo ligações a partidos políticos ou a sindicatos e tendo mesmo, nas últimas eleições legislativas, votado no partido que nos governa, posso dizer que não fiz greve por seguidismo político ou sindical ou por ser, simplesmente, do contra. Também não fiz greve por causa do congelamento das progressões na carreira, do aumento da idade da reforma ou em protesto contra as aulas de substituição. Claro que, sendo filho de boa gente (muito boa, mesmo), eu sinto tudo isso, mas, em certa medida, sou capaz de compreender: já são vários anos de aumentos abaixo da inflação, e mesmo de congelamento de vencimentos e, agora, de progressões, mas a crise persiste e é preciso apertar o cinto; é um facto feliz que hoje se vive mais tempo, pelo que é natural a necessidade de trabalhar mais anos (embora isto tenha efeitos negativos de que pouco ou nada tenho ouvido falar, nomeadamente, hipotecando a modernização e o aumento da produtividade do sector público e reduzindo as oportunidades de emprego para os jovens. Não era necessário assistir aos recentes acontecimentos verificados em França para perceber que, ao tentar resolver um problema, se estarão, talvez, a criar outros idênticos ou piores); sou capaz de concordar que, em determinadas circunstâncias, as aulas de substituição podem fazer sentido.
Não foi, portanto, de ânimo leve que aderi à greve. Fi-lo, porque me sinto cansado. Cansado de ser apontado como o culpado das crises, a crise do insucesso escolar e a crise financeira do país. Neste particular, parece que a qualquer momento se irá transformar um velho ditado em qualquer coisa como "em casa onde não há pão, todos ralham e só os funcionários públicos não têm razão", parece que qualquer dia o facto de eu ter um salário ainda vai ser considerado uma obscenidade, parece que será de bom tom que eu me sinta envergonhado por ser pago com o dinheiro dos impostos.
Fiz greve, porque sou solidário com os meus colegas, e candidatos a colegas, mais jovens, a quem sucessivos governos de adeptos de boas estatísticas abriram sucessivas portas de entrada na profissão para, agora, dizerem: "Quem vos mandou vir? Agora não precisamos de mais ninguém." Fiz greve, porque sou solidário com os colegas mais velhos que viram, literalmente, e de um dia para o outro, a sua vida profissional transformar-se num verdadeiro pesadelo. Fiz greve, porque não trabalho em qualquer linha de montagem. A alguém que exerça essas funções talvez se exija, essencialmente, concentração e competência técnica. A mim, no entanto, exige-se tudo isso e, principalmente, alguma paciência e muito entusiasmo. Quase tudo o que se tem feito na educação (e não é só de agora) nos faz perder a paciência e nos reduz o entusiasmo.
Fiz greve, porque estou cansado de ver sucessivos governos, mais uma vez adeptos de boas estatísticas, a não vislumbrarem o quanto é óbvio o facto de os principais problemas da educação no nosso país não residirem na escola, mas sim fora dela. Fiz greve, porque estou farto de ver despejar cada vez mais e mais variadas responsabilidades em cima dos ombros da escola e respectivos professores, sem que os restantes agentes educativos (ou seja, toda a comunidade) sejam também responsabilizados pela parte que lhes compete e sem que se perceba que é impossível a escola resistir a tanta expectativa e a tantas missões ao mesmo tempo. Fiz greve, porque estou farto de ver aumentar a carga e a variedade curricular a que são submetidos os pobres dos alunos, sem que se perceba que isso só lhes provoca uma excessiva dispersão, uma ainda maior incapacidade de concentração e falta de tempo para o essencial, e que é o trabalho de estudo individual.
Fiz greve, porque estou cansado de ver uma ministra que não percebe que, ao tratar os professores como se eles não tivessem nada que dizer, mas apenas que fazer "mais" e "melhor", está, mais uma vez, a fazer passar para os jovens a mensagem de que o esforço para obter sucesso não tem que ser deles também, mas apenas dos professores. Fiz greve, porque ouvi questionar a senhora ministra da Educação sobre uma coisa tão simples como seja a de saber que sentido faz pôr um professor de Filosofia a substituir um outro de Educação Visual e a não resposta me fez pensar que talvez se esteja, novamente, a assistir à aplicação do princípio do barro e da parede: "Vamos lá atirar com mais este barro àquela parede. Se colar, óptimo, se não colar, podemos sempre dizer que as escolas não quiseram ou não souberam como agarrar a ideia. Quando se avaliarem os resultados, se tudo estiver igual ou pior, os culpados estarão identificados."
Fiz greve, porque sou pai de dois jovens estudantes que não quero ver transformados em puros tecnocratas ou infelizes excluídos. Fiz greve, enfim, por razões que eu diria corporativas, para protestar em nome de um maltratado corpo formado por professores e alunos que precisa de viver saudável e em harmonia para poder crescer como todos desejamos.
César Coelho
Penafiel

5 comentários:

Anónimo disse...

que pena que eu tenho de discordar desta conversa! com tão belas parras ... mas sem uva nenhuma!
Um profesor que não "gosta" de dar uma aula de substituição!!! Não é uma questão de "ter de", é uma questão de "ter o gosto e a oportunidade para" ! Não tem nada de verdadeiramente novo para transmitir à juventude, para além do que está no programa ?! Um arquitecto que não gosta de arquitectar livremente não é arquitecto! idem para engenheiros, advogados, médicos etc etc etc. Só os professores é que sofrem com a falta de dinheiro do estado! E os outros? e quem não é funcionário público? e quando não há dinheiro, onde se vai buscar? Direitos adquiridos?! então omundo não é uma constante mudança? Então não se lembram dos direitos adquiridos da aristocraci a francesa pré-revolução? etc etc etc. Só me lembro de uma célebre frase para recordar ao nossos "valentes" professores : Quemquer fazer encontra meios. Quem não quer arranja desculpas!" ... mesmo poéticas

Madalena disse...

É precisamente por gostar de ensinar livremente que me dói tudo o que se está a passar no ensino. Presumo que estejas bem informado, mas caso não estejas, querido amigo, podemos falar de viva voz um dia destes. Também não é dito na carta que são só os professores que sofrem com a falta de dinheiro do estado. Mas sim que são os professores que sofrem os opróbrios da crise de valores que se generaliza na nossa sociedade. Ou não?
Um beijinho para ti.
Pode ser que a gente se encontre e que se fale de viva voz sobre este assunto!

Pitucha disse...

Madalena
Li a carta e gostei! Apesar de não ser professora, concordo com o que lá é dito. E percebo-te.
Beijos grandes

Anónimo disse...

Grande César!, grande carta!! - IO.

t-shelf disse...

Depois daquele comentário lá em cima nem tenho vontade de dizer nada. Fica um beijo para ti maddy