domingo, 16 de setembro de 2007

Janela com vista sobre os Livros

Boa tarde.
Dez livros Madalena, tantos livros para uma vida que é tão curta, pois estamos mais tempo mortos do que vivos!
Dez livros para eu dizer e logo os que marcaram, deixando aqui a nódoa negra de uma agressão ao meu sentir, ali a carícia da companhia amiga nos dias em que não havia quem!
Comecei a ler, miúdo em Angola, livros que a minha mãe venderia a peso, quando saímos e de que hoje recordo farrapos de um saber demasiado além da minha idade: o antropólogo Redinha, imagine-se, que folheei sem compreender, menino branco em terra estranha. As Memórias e Trabalhos da Minha Vida, que o Norton de Matos escrevera e o meu avô Leonel comprara, o homem que queria mudar para Nova Lisboa a capital de Angola.
O que dá ter catorze anos descuidadamente analfabetos e ansioso por não o ser. Li já nem sei o quê, A Cabana do Pai Tomás, sim, o Grishka e o seu Urso de nem sei quem.
Depois Viseu. O Luís de Miranda Rocha, poeta, mais velho do que todos nós no Liceu, que me iniciou no Camus e através dele no Sartre e por via dos dois no existencialismo e na visceral raiva ao burguês filisteu e argentário, inculto e indiferente. Li muito, orgulhoso de ler e de estar triste com o que sentia lendo.
Li no Gilbert Cesbron, que ninguém hoje sabe já quem é, a história de um miúdo de rua perdido por sítios escusos, os «Cães Perdidos sem Coleira». O momento em que o gaiato já com a carne ansiosa a chamá-lo, sente, abraçado por uma fêmea de aluguer, um corpo quente, carnudo e macio, como se a saltar debaixo da blusa, correspondeu ao meu saber como seria uma mulher.
Lia, lia, lia, incansável, o que vinha nas carrinhas da Gulbenkian, coisas que nem entendia nem poderia compreender. Soube que o Herberto Hélder trabalhou ali, distribuindo livros a adolescentes como eu. Descobri a Aparição e com ele o Vergílio Ferreira, o T. S. Eliot, impossível de traduzir, a Fenomenologia do Espírito do Husserl. Morávamos ao lado do cemitério. A leitura era uma forma de estar-se vivo.
Chegou enfim a Faculdade e com ela a miséria económica de ter de ler por empréstimo e nem vontade ter de ler. Imaginei todo o Pessoa, reescrevendo-o para além do que dele li. Inventava literatura. Apareceu-me o Rumor Branco do Almeida Faria, que mais tarde deixou de escrever coisa que valesse a pena ler, as vulgatas marxistas, que eu tenho os quarenta e cinco volumes da Obra Completa do Lenine, ainda com o prefácio do Roger Garaudy. Não sei se descobri quem era o Ruben A., mas li poesia que a Moraes editava graças ao dinheiro amigo do António Alçada Baptista.
E depois veio o turbilhão, tudo o que marcou a reforma e a contra-reforma do meu ser. Imaginem-me a ler as Bases Neuronais da Vida Psíquica do Simões da Fonseca aos vinte anos, a traduzir do italiano sem saber italiano o Giuscibernetica do Mario Losano. Livros de Direito que deram a volta ao mundo na minha cabeça como o Antropologia Existencialismo e Direito do Baptista Machado, O Homem sem Qualidades do Musil, o Joaquim Bação Leal, morto na Guerra em África, esquecido hoje por todos.
E as mulheres, pela escrita, pela feminilidade do escrever, pelas quais me apaixono e a quem sou fiel, como a Ondina Braga, a Irene Lisboa, a Dulce Cardoso, a Dalila Lello Pereira da Costa.
E aqueles a quem tenho uma raiva inaudita sem saber porquê, como o Lobo Antunes, o Miguel Sousa Tavares, e todos os que escrevem Codex's e esoterismos mil, sim, que eu venho do tempo em que li o Guénon e o Julius Evola e até mesmo o Jacques Bergier e nada mais há a ler quanto ao Amanhã dos Mágicos.
Como eu gostava de saber alemão para ler em alemão o Thomas Mann, e todas as línguas do mundo para ler o Ezra Pound e com ele endoidecer.
Em frente a mim o Kakuzo Okakura, «O Livro do Chá», e com ele o taoismo tranquilo desta tarde, lá dentro, no lugar onde deveria estar uma mesa de cabeceira no catre onde durmo, o Wenceslau de Moraes, morto no exílio de si, o Manuel Laranjeira, morto com uma bala na cabeça.
E o Jesué Pinharanda Gomes, e atrás dele toda a filosofia da saudade! E a Carolina Michaelis de Vasconcelos e com ela todo o galaico-português a doçura do ser que nos distingue dos ossudos de Castela!
Madalena, dez livros? Mil livros na Biblioteca Labiríntica do Borges, cego e genial, a infinita biblioteca do existir.
jab

1 comentário:

victor rosa de freitas disse...

Meu Caro Amigo Dr. António Barreiros:

Não desanime - NUNCA.

Continue a ler os seus livros e a afirmar o seu "thymos".

Porque o seu "thymos" é culto, suave e não molesta ninguém (tirando a sua pública e confessada "inimizade" com Alberto Costa, o da Justiça..., é a pura verdade), mas, muito pelo contrário, enriquece-nos a todos.

Afirme, por favor, o seu "thymos" e esqueça a "morte", a "velhice", as "dificuldades" porque essas são - sempre o serão - as "conspirações" do universo contra todos e cada um de nós, os Humanos - sem excepção!

Que a Paz de Espírito o acompanhe, sempre, meu Amigo.


Victor Rosa de Freitas