domingo, 20 de junho de 2010

O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.

Estas palavras são proferidas pela avó Josefa, a avó que Saramago imortalizou num texto que conheci num manual de oitavo ano, há mais de trinta anos. Li e reli o texto. Continuo a relê-lo. Faço-o com menos frequência porque o sei quase de cor. Sei de cor a idade desta avó, "quase noventa anos", a condição, "és velha e dolorida", a memória da beleza da juventude como prova de uma existência de valer a pena, "dizes que foste a mais bela rapariga do teu tempo e eu acredito", a humanidade, mesmo para com os animais, coisas da vida dura do campo, "meteste os bácoros na tua própria cama, quando o frio ameaçava gelá-los", a verdadeira importância, "trave da tua casa, lume da tua lareira", a simplicidade absoluta, "és sensível aos casamentos das princesas e ao roubo dos coelhos das vizinhas"... Não foram os dias duros nem um mundo injusto e belicoso que a impediram de afirmar, sob os céus estrelados das noites da Azinhaga, pelos quais ela nunca viajaria: o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.
O que faltou de zangas na vida da avó sobrou para o escritor que deu a Portugal a honra de um Prémio Nobel. Quem sou eu para pensar ou julgar seja quem for? Ele ou os outros que se envolveram nas polémicas, sabendo de antemão que nem um nem outros abdicariam de uma posição, da sua posição? Não sou nada nem ninguém, claro!
Recordo ainda uma passagem do Memorial do Convento em que pela voz de uma das personagens (talvez Bartolomeu de Gusmão) nos é transmitida a ideia de um perdão merecido quase automático por parte de um Deus que se crê infinitamente justo e infinitamente misericordioso.
Tenho para mim que o próprio escritor, apesar de achar que o mundo às vezes não é assim tão bonito como achava a avó Josefa, tinha também pena de morrer. O seu apego à vida e às coisas dos vivos era indisfarçável.
Por isso, Escritor, continuarás a fazer parte do mundo dos vivos, pelo menos enquanto viverem esses vivos que te tocaram o corpo, a alma e o pensamento

5 comentários:

Isabel Preto disse...

Bela homenagem ao nosso Nobel! Também gostei de recordar esse excerto da avó.
Beijos, Madalena.

Graça disse...

Muito bonito Madalena.
beijinho

Teresa disse...

Muito bonito, mesmo, Madalena. Obrigada por esta partilha.
T.

O Baú do Xekim disse...

Olá Madalena, boa tarde.

Um feliz e reconfortante fim de semana pra si e família.

beijinhos.

gabriela disse...

Gostei muito desse excerto da avó, lindo mesmo.
Já tentei ler alguns livros do nosso Saramago mas é me muito dificil com muita pena minha tenho alguma dificuldade em compreender a sua escrita. A minha filha tem quase todos os livros deleum dia destes vou tentar novamente, beijinhos Madalena